Não cantarás
Estava outro dia num qualquer convívio quando tive a seguinte epifania: talvez seja uma bênção eu não saber cantar.
Não para mim, para os outros. E daí talvez um pouco para mim, ao não me obrigar a viver em exílio.
Talvez se trate daqueles males que vêm por bem.
Adoro música. Há épocas em que gosto de descobrir, noutras de recorrer aos clássicos; dias em que não saio daquelas duas canções, dias mais variados; fases em que ninguém me tira o reggaeton, fases em que não largo o rock.
Toda a minha vida quotidiana se desenrola com uma banda sonora dentro da minha cabeça. Por vezes é tão intrínseco, que nem dou por ela, e só me apercebo quando já estou a enjoar daquela música sem saber bem porquê.
Tantas outras vezes, dou por mim a trautear. Com sorte, não está a sair muito som e só parece que estou a ter um ataque do miocárdio e espasmos na boca. Com azar, está mesmo a fazer barulho.
Mas trautear é um mero prólogo do cantar, uma benesse em comparação.
É que eu gosto mesmo de cantar. Nem estou a falar das caras estranhas e expressões excessivas; do mal, o menos.
Gosto de cantar.
Ou algo semelhante.
Fazer barulhos? ... Gritar com alguma melodia? …
São imensas as situações em que uma música me vem à cabeça, ou porque aquela frase me fez lembrar uma letra, ou porque aquele tema está mesmo bem retratado numa canção, ou porque se aplicaria mesmo bem aquele refrão.
São inúmeras as vezes em que me apetece responder com uma música ou parte da sua letra, ou reagir apenas com som, com uma melodia de uma canção. Bem, são várias as vezes em que o faço (e às vezes me arrependo). “Não estás a ver como é a música? É aquela assim” – e começo a cantar; como é que alguém haveria de adivinhar o que era isso?!
Talvez seja uma bênção que eu não saiba cantar.
Imagino que, soubesse eu cantar ou tivesse eu uma voz naturalmente bonita a cantar, deixaria de apenas falar.
Responderia a 99% das conversas em música, fosse ela inventada ou a adaptar letras e melodias existentes. Sim, sim, quando digo que gosto de cantar, não é necessariamente algo que exista. E é sempre. Desde o leite com cereais ao abrir o email; “tu vais para o spam, querias tu ter um recibo de leitura e não to vou dar, lixo, lixo, lixo, já obtive essa informação”. Mas a cantar. (estão a ver aquele clip do Marshall a estudar Direito?)
Algo me diz que isso não funcionaria bem em sociedade, nem a nível social e de convívio, nem a nível profissional, imagino.
Lembro-me de uma célebre revista Fórum Estudante, há muitos anos atrás, que me destroçou com um: “não cantarás”. Andava eu a aprender a tocar guitarra (talvez seja também uma dádiva que nunca tenha dominado o instrumento) nesta fase, feliz da vida, quando o horóscopo da revista quanto ao meu signo tinha por título “não cantarás” e seguia a dizer “não, ninguém te quer ouvir cantar noite feliz” (só a música que andava a cantar em loop).
Foi das coisas mais cruéis que já li. Terá talvez sido aí que pus definitivamente de lado qualquer esperança de soar algo melhor do que um animal a ser torturado. Quer dizer, só podia ser a maneira do Universo de chamar à atenção, através de uma revista para estudantes. Foi duro. Mais ainda quando na minha família, ao invés de destroçados, ficaram até um pouco aliviados.
Prefiro pensar que é pelo melhor.
Não estaria preparada para saber cantar. Talvez não tenha a responsabilidade suficiente para conseguir lidar com esse poder. Ia exagerar, tenho a certeza que ia exagerar. Não ia conseguir cantar só um bocadinho. Já assim, bem sei o que custa. É, talvez seja melhor assim.
Talvez seja uma bênção não saber cantar.
P.S.: Imagino que seria algo parecido com isto:
(filme "Capuchinho Vermelho - A Verdadeira História" e o bode que só consegue falar se for a cantar)
R.