- Já ouviste falar daqueles novos programas de TV, de domingo à noite?
- Sim.
- Achas aquilo normal?
- Não tenho nada contra.
- Como não tens nada contra?
- Porque haveria de ter?
- Achas normal o que se está ali a fazer? A forma como as mulheres estão a ser expostas, humilhadas. O estereótipo que se defende. É chocante. Não percebo como é que nos dias de hoje isso é permitido. E percebo, menos ainda, como é que as mulheres não se revoltam contra isso. Enquanto mulher sinto-me humilhada, rebaixada. Andamos anos e anos a lutar por direitos, ainda agora assinalámos o 8 de Março, esforçamo-nos pela igualdade, e depois é isto. Permite-se isto. E ainda se chocam com os casos de violência doméstica. Com as mortes. Com as decisões do juiz. É isto que se fomenta com este tipo de programas.
- Não estou a perceber...
- Como não estás a perceber? O que se passa naqueles programas é inadmissível, as mulheres são expostas, como se numa montra estivessem, e os homens (ou as mães, o que ainda é pior), escolhem aquelas que melhor se adequam aos seus caprichos (ou dos filhos).
- Hum. Estou a ver... Essas mulheres foram obrigadas a estar lá ou estão por vontade própria?
- Não!!! Aquilo é um concurso. Candidataram-se. Mas a questão não é essa...
- Então estás a dizer-me que foi opção delas estar ali e sabiam para o que iam?
- Sim, mas...
- Mas não podem escolher se colocar numa montra porque socialmente isso não é aceite? Isso não faz muito sentido.
- Não é nada disso. Elas podem escolher ser o que quiserem. Mas já viste aquilo que se fomenta? Que os homens escolhem as mulheres com base na imagem, se sabem cozinhar, se tem filhos, se já foram casadas... No fundo é como se aquilo fosse uma entrevista de emprego. Fazem 50 mil perguntas, ridículas, como, por exemplo, se é virgem, mas o que tem eles a ver com isso? Agora uma mulher para ser ideal tem que ser imaculada, saber cozinhar, cuidar da casa, planear ter filhos? O que é isto??
- E a mulher tem que ser ideal?
- Ah?
- Sim, tu disseste “a mulher para ser ideal tem que”. A minha pergunta é “tem que haver uma mulher ideal?”. Ideal para quê? O que é ser ideal?
- A questão não é essa. Naqueles programas fomenta-se um determinado estereótipo. Defende-se que a mulher tem que ser de determinada forma para ser escolhida.
- Ok, eu já percebi essa parte. Mas essas mulheres não estão lá porque querem?
- Estão, mas...
- E não tem o direito de escolher estar ali, daquela forma?
- O que? Fomentar estereótipos?
- Então vamos por partes: Nós queremos ser livres, queremos ter direitos, liberdade, fazer o que queremos, pensar como entendemos, seguir o caminho que escolhermos, sem que haja ninguém a impedir-nos disso, simplesmente porque somos mulheres, certo?
- Sim.
- Defendemos o fim dos estereótipos, do caminho demarcado, a ideia da mulher como uma máquina de fazer filhos, ou a dona de casa, submissa às ordens do marido, ou do pai.
- Claro.
- Mas a mulher não pode querer participar em programas de televisão, onde há homens que as escolhem, seja para o que for, nos critérios que assim entenderem?
- O quê?
- Estou muito confusa. Afinal, as mulheres podem ser tudo, exceto aquilo que as outras mulheres acham que não podem ser.
- Não é nada disso. Mas...
- Sabes o que a minha mãe sempre fez questão de deixar claro lá em casa? Que por lá "reinava" a democracia... a democracia dela.
Ainda bem que a democracia dela me ensinou que liberdade é, também, aceitar que os outros pensem de forma diferente da minha. E não os julgar por isso.
M.